Apresentação do livro a 13-12-2018 pelos jornalistas/escritores José António Santos e João Céu e Silva.

– Um livro de Abril por José António Santos

Amor, Ioga e Net, ou a crónica do Senhor Alferes.
Que livro é este saído da pena de Faria Artur e agora dado à estampa pela Editora Âncora?
Estamos em presença de uma narrativa clássica, com um narrador a contar a ação, no respeito pelas regras de bem juntar as letras.
Através de escrita escorreita Faria Artur discorre com clareza sobre a sucessão de acontecimentos datados no tempo e no espaço, onde todos eles acontecem e se desenrolam.
Como ferramentas de escrita, Faria Artur usa o discurso direto, mas com grande facilidade passa deste para o indireto, ou, então, espraia-se no discurso indireto livre através do qual revela arengas dos personagens misturando-as com o discurso do narrador.
Revel de singular sensibilidade, Faria Artur apresenta os personagens da sua história com grande delicadeza, furta-se a adjetivações excessivas ou a comentários superlativos, com finura, descreve uma situação de “stress pós traumático” sem a referir como tal, preferindo deixá-la subentendida na expressão de uma personagem secundária.
Amor, Ioga e Net, ou a crónica do Senhor Alferes conta trechos da história da vida de três homens que se encontraram na Guerra Colonial em Moçambique, e por lá andaram a terçar armas, no dealbar da década de [19]70.
Experiência radical forja especial relação entre aqueles que a partilharam, deixa sulcos profundos no interior de cada um, estabelece laços que permanecem. É união perpétua.
É uma união exigente de vínculo celebrativo. Por isso, nas décadas seguintes sempre se reúnem, anualmente, para reviver aquele tempo, durante o qual, em muitos momentos, forçosamente, tiveram de confrontar-se com situações limite da própria vida.
Compreender-se-ão, assim, as razões do narrador para classificar a relação entre esses personagens, ao descrever um momento de despedida (Pág. 19):
“Adeus, até um dia, amigos do coração. Temos o nosso lugar no céu, podem crer.”
Sendo certo que a expressão “amigos do coração” atravessa toda a narrativa na ação dos diferentes personagens, a chave de leitura para Amor, Ioga e Net, ou a crónica do Senhor Alferes encontramo-la antes na Págs. 18-19. Ei-la:
“A Guerra Colonial – os quotidianos sempre iguais,
a fome, o comandante, os petiscos, os serviços do oficial de dia,
a formatura, o hastear da bandeira, a morte e os estropiados,
os finórios do ar condicionado, em Nampula,
as pretas e os esquentamentos,
o Marcelo Caetano (último primeiro-ministro
do regime derrubado em 25 de Abril de 1974)
e os filhos da puta, a chicalhada, as colunas de reabastecimento,
as minas, a Cilinha, as emboscadas, as Berliets, o paneleiro,
os fodilhões, os apanhados pelo clima, os bêbados,
os Emacs, as evacuações, a falta de gasóleo,
e mais cabrões e mais filhos da puta”. (Fim de citação)
Sendo esta a chave de leitura do Livro de Faria Artur, desengane-se, porém, o leitor aqui chegado.
Esse naco de prosa sobre a Guerra Colonial, explosivo, não nos conduzirá ao teatro de operações, à brutalidade da guerra; tais acontecimentos não se encontrarão em nenhuma parte do livro.
Decididamente, o Autor não quis ir por aí.
Lá para o fim da prosa, Faria Artur recupera “Aerogramas” da Frente de Moçambique e mostra conteúdos desses sobescritos amarelecidos, em flashes de solidão e rotinas irritantes (Págs. 137-141).
Uma atmosfera de “quotidianos sempre iguais” haverá de refletir-se no desfiar de toda a narrativa, com a revelação de encontros e desencontros, de afetos não resolvidos, de muitas procuras para ludibriar a solidão.
São três os principais personagens de Amor, Ioga e Net, ou a crónica do Senhor Alferes:
Jaime, jornalista, ex-alferes, narrador, surge como protagonista. Casado com Glória, ambos assumem estar “separados afetivamente” sem nunca terem desmanchado o que haviam feito, mesmo assim, ela será sempre um cais onde ele acabará por aportar.
Jaime é homem de muita vida: na Net, flirtava com Joana e, sob o pseudónimo de Mário, catrapisca Margarida com quem chega a sair, para encontro amoroso afinal frustrado, na Praia de Biarritz; no Ioga, namorava a professora Paula, “um amor” omnipresente na trama da narrativa.
Germano, proprietário, ex-alferes, casado com Mercedes, é o outro personagem.
Por fim, Zezé, artista plástico em crise de criatividade, ex-furriel Ranger de Lamego, casado com Elsa.
Eles são os “amigos do coração” de Jaime nesta aventura onde, não raro, o burlesco ganha forma para disfarçar, ou mesmo ilidir, angústias, raivas, impotências, sempre avivadas por tantas memórias.
Lembranças que Jaime, o narrador, acabará por assumir na primeira pessoa e a tomar sobre si próprio o personagem, na descrição que faz dos episódios da vacina e da morte de quatro cadetes, em Mafra. (Pág. 68-71).
A história de Amor, Ioga e Net, ou a crónica do Senhor Alferes começa com uma almoçarada em Fátima onde, anualmente, se juntam ex-combatentes da Guerra Colonial, e seus familiares. É o encontro de “amigos do coração”, onde, invariavelmente, recordam as mesmas histórias e contam ausências daqueles que ficaram pelo caminho.
Num desses encontros, Jaime, Germano e Zezé decidem prolongar a reunião e partem juntos à procura de outros camaradas no Norte do País.
Será nesta viagem, torneada por múltiplas peripécias, na ida ao Norte e no regresso à capital, que a trama da narrativa ganha corpo.
Nesse espaço e nesse tempo, as histórias de Jaime, Germano e Zezé chegam a ser desconcertantes e não cessam de surpreender o leitor.
Da Guerra Colonial e seus efeitos, apenas Zezé deles parece padecer, a avaliar pelo desabafo de Elsa, sua mulher: “De noite, acorda a gritar e a dizer disparates, fala de morrer…” (Pág. 96).
Em tudo o mais, a narrativa conta grandes comezainas, folias, viagens de amores e desamores dos três amigos, em busca de boas razões para se manterem vivos, felizes, contentes.
Jaime, o narrador, sob a capa de Mário, é pródigo a navegar na Net com presença assídua em Chats, onde explora o erotismo (Pág. 103-107) e outras conversas da treta com amigas e outras mulheres que aparecem na rede (Págs.79-8; 141-144; 163-166).
A verve do jornalista revela-o Jaime na primorosa narrativa da ida às “Urgências”. Os diálogos aí travados descobrem um quadro bem pintado do nosso Serviço Nacional de Saúde. Págs. (35-38)
Outros mosaicos que compõem Amor, Ioga e Net, ou a crónica do Senhor Alferes são explorados pelo narrador, na sua pele de jornalista cultural, incansável na ilustração de tantas histórias, pontuadas com livros, músicas e acontecimentos.
Ao longo das páginas do livro, amiúde, surgem citados diversos autores, nomeadamente: José Vilhena (Pág. 8), Rex Stout (Pág. 32), Mia Couto, (Pág. 43), Paulo Auster, (Pág. 46), John Irving, (Pág. 48), Cecília Supico Pinto (Pág. 51), Manuel Vásquez Montalbán (Pág. 56), Herman Hesse (Pág. 78), Saramago (Pág. 115).
Zeca Afonso (Pág. 31), Bach, Vivaldi, Plácido Domingo, Truffaut, (Pág. 47), são outros vultos que, a par de acontecimentos como o cubo mágico de Rubik (Pág. 82) e o Vulcão da Islândia (Pág. 145), servem ao narrador para revelar preferências, datar épocas precisas.
A narrativa releva, igualmente, uma estética cinematográfica que Faria Artur maneja com à-vontade nos diálogos da trama.
Os mais próximos do autor, não terão dificuldade em identificar traços autobiográficos de Faria Artur em Amor, Ioga e Net, ou a crónica do Senhor Alferes. (Algumas pistas: Jaime, Mafra, “Troika”, Ana e avó Benedita em Samora Correia).
Aqui chegados, põe-se a questão: como classificar este livro?
Guião, romance, ficção, autobiografia?
De uma forma simplista poderia dizer-se que Amor, Ioga e Net, ou a crónica do Senhor Alferes cabe em todas estas classificações sem que especificamente traduza uma ou outra. Por isso, torna-se difícil a sua classificação.
Saramago dizia que tudo aquilo que um autor escreve é autobiográfico, porventura inspirado pelo conceito de circunstância de Ortega y Gasset.
O Coronel Matos Gomes que é o escritor Carlos Vale Ferraz, insinua que todo o Alferes que se preze e tenha feito a Guerra Colonial, acha que tem de escrever “um livro de Alferes”.
Ora, perante a narrativa clássica com discurso indireto livre de Faria Artur, sinto-me inclinado a não acompanhar Saramago nem Matos Gomes nas considerações citadas. E, no embaraço da classificação, direi que Amor, Ioga e Net, ou a crónica do Senhor Alferes é, seguramente, um livro de Abril.
Livro de Abril pelo contexto histórico da ação, pela cultura que dele se desprende, pela liberdade que respira.
Seja como for classificado, afinal, a classificação é o que menos importa, Amor, Ioga e Net, ou a crónica do Senhor Alferes vale a pena ser lido, diria mais, tratando-se de um livro datado, merece ser estudado.

José António Santos
Oledo, 6 dezembro 2018