Capa do livro Perdidos num Verao Quente
Capa do livro Perdidos num Verao Quente

Depois de cumprir o serviço militar obrigatório em Moçambique, Mário, alferes miliciano, regressa a Lisboa, onde se lhe depara um país em profunda mudança. É o Portugal de 1974-75, de dias politicamente conturbados, mas de riqueza social irrepetível, marcando o ponto de partida de Perdidos num Verão Quente.

Não podendo ignorar tudo isso, o autor recusa, no entanto, o panfletarismo, fazendo com que a acção romanesca seja dominada por histórias de amor cruzadas por acontecimentos que vão do 28 de Setembro ao 11 de Março ou ao assalto à Embaixada de Espanha em Lisboa. Ou seja, procurando integrar-se no dia-a-dia dessa sociedade onde se sente perdido e em que ressalta o seu relacionamento instável com as mulheres, nomeadamente com Antónia, a mãe da sua filha, Mário tudo faz, no entanto, para que os eventuais antagonismos políticos não o afastem dos amigos nem das namoradas de outrora… O que, na prática, lhe haverá de ajudar ao reencontro com os locais de diversão da noite lisboeta, onde frequentemente a convivência se cruza com a prostituição e a violência.

Mas não só, já que uma surpreendente (e de todo inesperada) relação amorosa com Susana, fará com que o antigo alferes vá esquecendo a empresa de que é gerente e viaje com regular frequência até às Caldas da Rainha ou à Nazaré. Onde, ignorando que desde há muito vem sendo vigiado por Antónia (que casará com um jornalista) e pela filha, vive uma vida paralela à de Lisboa…

Dois excertos do livro:

(…)
Antónia não aceitou o convite de Mário para jantar, o que o deixou profundamente surpreendido. Sentiu-se preterido, certamente a favor do Jorge. A decisão afectou-o. Fê-lo sentir-se como não insubstituível. Previa a abertura do caminho para a dispensa, uma opção decorrente da sua displicência.
Aproveitou para ir jantar a casa dos pais. O trajecto no Carocha foi cumprido sem se aperceber de tempo ou distância. Só quando beijou o pai acordou, despertando do automatismo que o conduzira até ali. Mesmo assim, o descontrolo estava tão marcado no rosto, que aquele observou: «Ó rapaz não estás manso. O que é que se passou? Pior estou eu e olha…»
«Então? Nem reparei se o Benfica encostou!»
«Nada disso. Vamos mas é para a mesa, que são bem horas e a tua mãe está farta de protestar.»
«Que bom, sopa de feijão…»
«Ó filho estou raladíssima. Vê lá tu, que confundiram o teu pai com um pide!», disse a mãe com um ar meio aterrado. «O quê!!! Diga lá pai!»
«Não te rias – prosseguiu a mãe – porque o caso é sério e o pai há três dias que não sai de casa. Vê lá que ele estava à porta do café a falar com o jornaleiro e mais não sei quem, quando um bêbado qualquer se pôs à frente deles e começou a dizer que ele era da PIDE e há uns anos lhe tinha batido… começou a gritar e a ameaçar com o COPCON (Comando Operacional do Continente, constituído a 12 de Julho de 1974, de que foi comandante Otelo Saraiva de Carvalho). O que lhe valeu foram as pessoas que o conheciam. Os amigos e os vizinhos… uma vergonha! Mas agora parece estar tudo esclarecido, pois o homem apareceu aí,ontem, acompanhado por um polícia e pelo Sr. Bernardo para lhe pedir desculpa e assumir que o confundiu com o tal pide porque tinha bebido de mais… Isto não era de lhe dar uma tareia?»
«Mas quem foi, quem foi?», perguntava Mário com ar profundamente abalado.
«Não te preocupes filho, está tudo resolvido. O que é que achas se eu for à Comissão e depois colocar um anúncio no jornal, igual aos que saem todos os dias, a dizer que não tenho, nem nunca tive, nada a ver com tal cambada?»


(…)
Em Sete Rios grupos de jovens penduravam pendões e colavam cartazes com frases mobilizando as massas para o 1.º Maio. O ambiente era de festa, apesar da madrugada ir alta. Mário não se coibiu de dar uma apitadela de apoio, saudada pelos revolucionários com punhos erguidos bem alto. Pararam em Benfica. O carro, por mero acaso, ficou estacionado à porta do prédio que ela tão bem conhecia. No elevador, Mário deu um beijo carinhoso nos cabelos de Xuxa e sussurrou-lhe: «Antes de partires, desejo recordar e dividir contigo as nossas memórias. Não digas nada, que eu não quero perder essa tal imagem de marca que me colaste: “Transformaram-te num bloco de gelo”».
Quando Xuxa entrou na casa-de-jantar com o chá num tabuleiro, feito sem pensar se algum dos dois o beberia, já Mário colocara em cima da mesa um álbum de fotografias e montara a máquina de projectar de 8 mm.
Instalou-se o silêncio. Mário foi virando páginas sobre páginas no álbum e de quando em quando tirava uma fotografia que rasgava. Ela não dizia nada. Mantinha-se impávida. Só chorava. Depois fechou-o e mandou-o, com alguma violência, para cima de uma cadeira. Reinando sempre o silêncio, tirou, então, de entre meia dúzia de filmes arrumados junto ao projector, uma pequena bobine que projectou. Propositadamente,permitiu que a máquina a fosse assassinando – ou seja, queimando e rasgando fotogramas.
Desligou a máquina, e sussurrou: «Xuxa, as nossas contas estão feitas. Eu e tu não temos passado».
Deitaram-se. As palavras não foram nenhumas. Se Xuxa temia o sexo, rapidamente descansou, isso também pertencia ao passado. «Minha querida amiga – assinalou Mário a dado momento – a que horas pretendes sair daqui?»
«Não te preocupes Mário, eu apanho um táxi para casa…»
«Tem paciência, mas eu levo-te, porque, desta vez, não tenho dinheiro que chegue na carteira para o teu táxi.»
«Deselegante até ao fim!»
Às oito da manhã, junto do tal prédio a caminho do bairro da Graça, Mário parou o 1300. Cruzou os braços, encostou-se à porta e, calmamente,lançou-lhe a meia-voz: «Já não temos mais nada a fazer ou a dizer. Nós vemo-nos por aí. Beijos.»
Ela não respondeu. As lágrimas regressaram às faces da Xuxa.
Saiu, repentinamente do carro, sem se despedir. Correu para o tal prédio perto do bairro da Graça, fugindo da chuva miudinha que não parava. Meteu a chave à porta da rua e, num ápice, desapareceu na penumbra da escada.