(…)

Instrução mata quatro na lagoa

Numa manhã de Maio, quando andávamos muito entretidos na aplicação militar, no meio da Tapada de Mafra, começámos a ouvir enorme alarido para o lado das lagoas. Estas, devido às chuvadas, encontravam-se a transbordar, o que, aliado à intensa vegetação, lhes dava um aspecto de tenebroso pântano. No entanto, aparentemente, ninguém pareceu dar demasiada importância ao facto. Ficou «o que será?»
Só no fim da manhã de instrução, quando chegámos ao quartel, como sempre esfomeados, é que tivemos conhecimento do acontecido. Nada mais, nada menos, do que a morte por afogamento de quatro cadetes, além de não sei mais quantos a deitarem água por todos os lados. Sentimentos de repulsa e profunda dor tomaram, imediatamente, conta de nós.
Informaram-nos, então, que o alferes-instrutor – do quadro permanente – tivera a brilhante ideia de, durante a instrução, se aproximar daquela aparente piscina. Deste modo, os primeiros camaradas a entrarem na lagoa caíram num desnível, tipo poço, o que, associado ao lodaçal e à abundante vegetação, não permitiu que se libertassem facilmente, pois convém não esquecer que se encontravam vestidos e calçados com o equipamento de trabalho. Assim, todo o esforço que faziam para se libertar servia unicamente para se enterrarem cada vez mais. O referido alferes, ao tentar socorrê-los, claro, também se ia afogando. Hoje recordo, molemente, que na altura todos desejámos que lá tivesse ficado. Porém, o tempo tudo redime.
Como as primeiras tentativas de salvamento não foram eficientes – executadas, nomeadamente, com troncos de árvores e cordas – tiveram de chamar os bombeiros, que, quando chegaram ao local, se limitaram a recolher os corpos dos futuros alferes e transportá-los para a enfermaria do quartel. No entanto, é oportuno salientar que o percurso entre a vila e o local da Tapada de Mafra onde ocorreu o acidente, deveria andar por uns quatro, cinco quilómetros.
O acontecimento chocou profundamente toda a gente, desde a população até à oficialidade. De imediato, recordo, como forma de protesto, a recusa ao almoço por parte dos cadetes. Pareço estar, ainda hoje, a ver o comandante, vergado pelos galões de coronel, primeiro, por boas maneiras, depois em altos berros, que se multiplicavam naquelas paredes de pedra fria e nua, coagindo os cadetes a sentarem-se. Mas não teve sorte. Nas suas memórias, se as escrever, certamente não se vangloriará de ter obrigado os oitocentos cadetes a comerem.
O nervosismo assentou mais e a tarde começou com uma sessão de esclarecimento a cargo dos comandantes dos pelotões de instrução. Porém, não foram suficientemente persuasivos… e que outra coisa seria de esperar? Por aquela altura, aliás, já muito pouco do saído da boca de tais almas assumia um carácter convincente. Os problemas começaram a agravar-se, não era suposta outra atitude, e como logo no dia seguinte pretendiam despachar os corpos daqueles infelizes e temessem as nossas manifestações durante os funerais, resolveram, simpaticamente,«mandar os nossos cadetes para casa», em fim-de-semana obrigatório.
Mas estes factos, pela sua amplitude, não puderam ser escamoteados à opinião pública. O Diário de Notícias dava no dia seguinte destaque ao acidente (…)