Texto distinguido no «I Prémio Literário Irene Lisboa – 2008», promovido pela Câmara de Arruda dos Vinhos

Veio dos Estados Unidos. Na bagagem dois ou três documentários musicais, duas dúzias de cassetes com as respectivas bandas sonoras, destinadas à promoção, e meia dúzia de opúsculos com biografias e opiniões sobre os intérpretes. Não esqueceu umas «ervas», um excelente whiskie, destilado lá na terra, e uma postura de dilatada simpatia. Um corpo forte, quase gordo, mas de carnes rijas. Alegre, brincalhona e consciente de que o «marketing» teria, igualmente, de passar por disponibilidade para abrir as pernas. Era, assim, a Nancy.

Ao apresentar-se num festival de artes na província foi envolvida, de imediato, pelos habituais ‘galifões’. A recepção promovida num hotel da cidade, para divulgação dos produtos artísticos, trouxe exageros e quase espoletou um escândalo por causa das «ervas» aromáticas. Na altura, simpatizou com o Renato. No entanto, por aqueles dias, este limitou-se a ser charmoso e a cumprir a sua missão de divulgador profissional.

Quem o conhecia já lhe criticava a inusitada actuação piedosa. A todos respondia: «Deixa-os pousar. Isto é gente bárbara. Satisfazem-se com pouco.»

Na verdade, a camone era uma finória. Sabia escolher as companhias. Senhora de comprovada argúcia, durante uma semana ‘apaixonou-se’, passeou pela região, comeu e bebeu respeitavelmente, passou noites animadas nas discotecas… porém, aos lençóis Renato nunca apurou quem lá chegara.

Combinaram-se para Lisboa. Para trás ficou a correspondência deixada por ambos, ou melhor, trocada, nas caixas da recepção dos respectivos hotéis. Um ou outro telefonema fora de horas, entre tempo de bocejos, e os encontros esporádicos na sala das sessões ajudaram a montar a relação.

Na capital, Nancy ficou instalada num pequeno hotel, numa zona sossegada ao Parque. A escolha cuidadosa de Renato, claro, destinava-se a impressioná-la. Por um lado, porque do quarto desfrutaria uma vista fabulosa sobre a «cidade branca», como lhe chamou o cineasta Alain Tanner, e, por outro, porque lhe permitiria ter acesso facilitado às produtoras com quem pretendia negociar a venda dos filmes e a correspondente edição das bandas sonoras.

Ausente de Lisboa, por motivos profissionais, Renato só a pôde contactar três dias após a sua chegada à cidade, quando ela já se gabava de conhecer Alfama. Recolheu-a na recepção do hotel e partiram à descoberta do Bairro Alto. A noite daquele final de Setembro caíra fria, contudo Nancy surgiu-lhe trajada como se estivesse de partida para a Florida. Mais tarde, apesar de ser mulher de carnes duras, choraria a falta de agasalho.

Esperaram horas em pé por mesa num dos restaurantes da moda. A camone começou por saborear a linguiça frita, as azeitonas verdes com orégãos, os peixinhos da horta, o queijo da Serra da Estrela. Não tardou muito que erguesse o copo de vidro grosso, repleto de tinto do Douro, aos conhecidos de Renato que, por sinais, disfarçadamente, revelavam espanto por aquelas enormes e apetitosas mamas.

Com os estômagos mais calmos, bateram-se, então, com uma dose de jaquinzinhos e arroz de tomate. Vinho, muito. E como tão lauta refeição, ainda, não os satisfizesse duas enormes peras bêbedas. «Disto não há na América», disse-lhe Renato, ao que ela lhe retorquiu a meia-voz: «Pois não. Sabes que eu não me importava de ficar cá! Achas que é muito difícil arranjar trabalho numa editora?» A resposta do companheiro não lhe chegou, pois este limitou-se a ‘engolir’ um foda-se.

Sem resposta, mesmo face à sua insistência, saiu-lhe um: «Sabes my dear, agora bebia um whiskie dos meus!» Renato engoliu em seco, e enquanto acenava ao empregado pedindo a conta, sorriu-lhe: «Guardamos isso para amanhã. Hoje não dá, senão a minha mãe esfola-me, já não me vê não sei há quantos dias…». Apertou-lhe uma bochecha com dois dedos – notou-lhe frustração – e disparou: «Vamos dar uma volta; provas um bagaço gelado e depois até choras!». Ela, evidentemente, não percebeu o alcance da frase, apesar das explicações de Renato, e, encolhendo os ombros, desistiu da sua proposta.

A noite seguinte ficou combinada enquanto bebiam mais um café e ela bisava bagaço gelado num dos numerosos bares do Bairro.

No outro dia encontraram-se, a meio da tarde, numa esplanada do Rossio, quando Nancy começava a beber um segundo copo de cerveja. A vontade de Renato passava mais por metê-la num táxi, enfiá-la no quarto com vista para o Parque e, logo, logo, tratar dela sexualmente. Mas, no seu íntimo reconheceu que com a «camone» a ‘coisa’ tinha de rolar mais fina. Acima de tudo conservar o verniz (revelar postura de ‘intelectual’); estava consciente de que tinha de aguardar, novamente, pelo calendário dela. Ontem negara-se, agora pagava…

Nancy falou da outra banda e de quanto gostaria de atravessar o Tejo. Plano estragado. Não pôde dar cumprimento milimétrico ao programa que tecera. Meteram-se no cacilheiro e atravessaram o rio a caminho de Cacilhas. Na outra margem passearam pelo cais, olhando todo aquele ferro-velho atracado, cujos marujos, de diversificadas origens, envergando fatos-macacos, pintalgados de tinta vermelha e branca, e de mãos ocupadas com brochas e ferros, não se escusaram, lá das alturas, de dispararem assobios, piscadelas de olho e simularem sexo desenfreado, piropos a que ela respondia com o acenar de mãos. Renato fingia que não se passava nada – evitava o conflito! Visitaram tascas, onde petiscaram e esvaziaram imperiais. Uma Nancy feliz foi-lhe narrando o bom negócio que concretizara, nessa tarde, com um distribuidor cinematográfico. Também se beijaram, envergonhadamente, mais do que uma vez, junto a armazéns degradados.

Regressaram ao barco mais ou menos agarradinhos, mas Renato já mal conseguia disfarçar o peso do braço dela esquecido nos seus ombros. Por vontade da camone, o par fez a viagem no varandim do cacilheiro; Renato praguejava, silenciosamente, por ter de enfrentar o desconforto do ar fresco. Ela vinha impante, com o vento a arrefecer-lhe aquele corpo bem nutrido.

Jantaram no Cais do Sodré. Deliciaram-se primeiro com as Vieirinhas e, a seguir, com uma dose de pato com azeitonas. No final da refeição, a que não faltaram, novamente, as peras bêbedas, ele não se conteve e disse-lhe: «Meu amor, se não fosse o vinho rosé esta refeição ficaria na história… mas eu não te quero ser desagradável e, mais, não quero que te falte nada.»

«Oh que querido!», foi a resposta.

Começaram a subir a pé a Rua do Loreto. Renato estava a estourar de ‘apetite’, mas tinha consciência que o momento ainda não chegara. Porém, não conseguia discernir motivo plausível para aquela necessidade intensa de, imediatamente, se meter na cama com ela, nem quando se encontrava com mulheres bastante mais atractivas do que a actual companheira. Só se fossem aquelas carnes duras a chamá-lo!

A meio do trajecto mandou parar um táxi e tocaram, no meio das gargalhadas de Nancy, para a Praça das Flores. Ao entrarem no bar anteriormente anunciado, ela não conseguiu esconder a surpresa, transformada rapidamente em satisfação, por numa das salas se lhe ter deparado um bilhar. «Anda, vamos jogar.»

«Para já nem penses. Vamos é tratar de beber um drambuizinho. Deixa-te lá de bilharadas», foi a resposta de Renato que, entretanto, já se acomodara numa mesa.

«Promete que jogas mais logo.»

«Sem dúvida.» Esta resposta, universalmente entendida como «vai chatear outro», mereceu da parte dela um sorridente «Fuck you».

Não se demoraram mais de uma hora. Tempo suficiente para ela dar, sozinha, umas carambolas próprias de entendedora, repetir no gin e sussurrar-lhe, enquanto lhe passava a língua pela orelha, «espero que sejas melhor em outras coisas.»

A uma da manhã aproximava-se vertiginosamente. Não faltava gente à procura de lugar para os carros. Os táxis circulavam ocupados. Decidiram ir a pé até ao Príncipe Real. Caía a «molha tolos». Praticamente não trocaram palavra até ao hotel. Gastaram a maior parte do trajecto, cada um a olhar ininterruptamente pela sua janela, a mirar a cidade adormecida.

O porteiro desceu uns lanços de escada para lhes abrir a porta; lançaram boa-noite e subiram ao sexto ou sétimo andar.

Saíram do elevador abraçados e saborearam, com à vontade total, um beijo no corredor. Agarrou-se a ela, por detrás, dificultando a caminhada até ao quarto. Sentiu-se bem a ser arrastado por aquele corpo forte e duro.

Mas os momentos desagradáveis aproximavam-se; estavam mesmo a rebentar. O primeiro incómodo sentiu-o mal Nancy abriu a porta do quarto. Uma onda a suor, a sujidade, um fedor milenar que lhe causou falta de ar, só ultrapassada com uma tosse rebuscada. Disfarçou, entrou e deu de caras com uma divisão pequena em L, com uma janela, a qual certamente ainda não fora aberta desde que a camone ali chegara.

Aos seus pés uma mesa de sala-de-estar, rectangular, um candeeiro de pé alto; um armário de portas abertas; uma moldura envolvendo uma aguarela mostrando Lisboa a partir do Castelo de S. Jorge. Dobrou a esquina; sentiu a chave do apartamento a cair na cama encostada à parede; viu uma mesa-de-cabeceira toda escancarada e, imediatamente, a casa-de-banho, em cuja sanita Nancy já se sentara, sem se preocupar em encerrar a porta. Despudoradamente começou a urinar, com intensidade, e face ao olhar surpreso de Renato acenou-lhe com a língua.

Virou-lhe as costas, tirou o casaco e deixou-o cair na única cadeira existente no quarto. Sussurrou um «foda-se» e aproximou-se da janela que dava para o Parque… «Como é que me arranjaram uma merda destas, isto é pior que uma choça…»

Começou a despir-se vagarosamente e a perscrutar o espaço envolvente. Latas de filmes, cassetes, uma garrafa de bourbon, quase cheia, umas cuecas e uma t-shirt em cima da mezinha de entrada. O armário com dois ou três vestidos, umas calças de bombazina, um casacão e uma capa de malha semelhante à que usara nesse dia. Desviou o olhar e viu meias pelo chão, uns ténis e uns sapatos pretos de cerimónia. Um chiqueiro.

Sentiu-se agoniado.

Nancy, entretanto, saíra da casa de banho, nua do tronco para baixo, e sentara-se na cama, por fazer, ajeitando os lençóis.

Renato ficara em cuecas, com ar indeciso, parado no meio do quarto, a olhar para a camone que já tirara o soutien, do qual saltaram duas belas mamas. Pernas largas, uma vagina coberta de pentelhos grossos, diria cordame, braços de lançadora de peso e uma cara amorosa.

Renato tirara as cuecas. A camone já se deitara, assentara as costas em duas almofadas, pernas abertas e vagina toda escancarada. Iniciou, então, as passadas que ainda o separavam da cama. Parou, os lençóis tinham nódoas. Hesitou. Continuou a hesitar. Avançou. Juntaram os corpos. Beijaram-se. Rebolaram-se duas ou três vezes. Sentiu no corpo dela algo quente e molhado. Ejaculou. Ao fim de uns segundos ergueu-se. Dirigiu-se à casa de banho… e apareceu vestido ao pé dela.

«Então?», perguntou-lhe a rapariga com ar infeliz.

«Tenho de me ir embora Nancy querida, depois telefono.»

Não olhou para trás. Mergulhou no elevador.

Deu um ciao ao porteiro e dispensou que este lhe abrisse a porta.

Na rua, respirou fundo duas ou três vezes. Tomou a direcção, em passo acelerado, da Avenida da Liberdade.

Chamou um táxi e as suas primeiras palavras, mal entrou, foram: «Tenho de tomar banho».

«Desculpe, o que é que o senhor disse?», retorquiu-lhe o motorista.

«Não ligue, leve-me, por favor, à Avenida de Madrid».